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Sobre os nossos ossos

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Por Nara Vidal (Desde Londres)

Num dos seus diários, Virginia Woolf resume a vida que pulsa em Londres. Vida no sentido ininterrupto, histórico. “Pessoalmente, acho que deveríamos querer ler um livro sobre cada rua de Londres e, ao fim, pedir mais. Dos ossos de monstros extintos e moedas de imperadores romanos nos porões, ao nome do comerciante do outro lado da rua, a história toda é fascinante e o material inesgotável.”

Penso na notícia que eu ouvi no rádio, em 2013 sobre um esqueleto encontrado no estacionamento de um pub perto de Leicester, na Inglaterra. Não demoraram a descobrir que aquela carcaça teria sido do terrível Ricardo III, imortalizado por Shakespeare como o maior vilão da monarquia inglesa. Claro, Shakespeare não podia falar mal de James I porque era o monarca que pagava as contas do bardo, mas entre Ricardo III e James I eu tenho um palpite bastante irrefutável sobre vilania. Mas isso é outra história.

Aquela notícia dada ainda enquanto eu recolhia o café da manhã ainda me causa comoção porque me faz pensar nos descuidados passos pela cidade.

Em 2015, mais uma escavação no meio da cidade de Londres, em Liverpool Street, e mais de 3.000 esqueletos descobertos no local, enterrados ou jogados na área conhecida como Bedlam. Bedlam, palavra que significa confusão, caos, foi o apelido dado para Bethlem Hospital, o primeiro hospital da Europa para «doentes mentais» em 1247. Bethlem ainda está aqui. Hoje um dos maiores centros de pesquisa psiquiátrica do mundo. Mas perto de Bedlam, mais de 3 mil corpos jogados no campo, numa tentativa de enterrar a Peste Negra que assolou a Inglaterra de maneira tão profunda. Vítimas da praga entre 1569 até por volta de 1740, ali, escondidas no caos debaixo dos passos da cidade, do metrô, do agito que é Londres naquela parte leste. DNAs verificados, nomes e sobrenomes catalogados de famílias inteiras, amostras dos dentes. Isso servirá para uma pesquisa detalhada sobre bactérias, inclusive as que foram responsáveis pela Peste Negra. Passados trágicos assim, em massa, me comovem como Pompéia, na Itália. Mas é que esse está aqui, bem debaixo dos meus pés. Casualmente.

No século 18, Bedlam recebia turistas de gosto questionável e mórbido para ver os doentes de perto. Lá havia homens e mulheres que sofriam de distúrbios mentais. Mas havia também um enorme grupo de pessoas que apresentavam características de personalidade e identidade que desafiavam os tempos. Mulheres que gostavam “excessivamente” de sexo, homens atraídos por homens, mulheres atraídas por mulheres. Tudo o que questionava conceitos moralistas de ordem sexual eram trancados e categorizados como distúrbios. Se era provável entrar em Bedlam são, não era possível sair de lá sem traumas.

*****

Quem diria: em casa, do meu sofá, assisto emocionada, pela TV, ao cortejo fúnebre que leva os restos de Ricardo III. Os ossos encontrados eram mesmo do homem corcunda como sugeriu Shakespeare. Numa carruagem preta, ao vivo, vejo o caixão ser levado para a catedral. Caixão este, feito em carvalho por um dos seus descendentes. Jogadas pela carruagem, rosas brancas, aquelas que simbolizaram a Dinastia dos York. Ponto final para Ricardo, enfim.

Eu como testemunha do seu enterro. Cuidemos do nosso pisar nesses chãos.

Uma das coisas mais emocionantes que eu já vi foi o cortejo fúnebre do rei Ricardo III. Quando eu poderia, um dia, imaginar que assistiria aos ossos de um monarca que morreu na última batalha da Guerra das Rosas em 1485, serem enterrados diante dos meus olhos? Descobertas assim sempre me impressionam demais. Há pouco tempo foi descoberto na Irlanda um cemitério clandestino de crianças de mães solteiras. Em Londres, há dois anos, mais de 3000 esqueletos foram descobertos quando uma reforma da estação de Liverpool St começou. Foram pessoas que viveram durante períodos como os de Shakespeare, da grande peste negra, do grande incêndio de Londres. E sempre penso nas coincidências de pessoas e momentos como o ator que passava por uma ruela perto do Tâmisa e observava as escavações de uma empresa que construiria, naquele local, escritórios. O ator pergunta o que encontraram e um homem responde que acharam o primeiro teatro de Shakespeare. Ele, claro, se referia ao The Rose, já que o The Globe foi construído sete anos depois. Apesar do tesouro achado, a empresa iria adiante e construiria os escritórios conforme o combinado, não fosse por esse ator avisar Dustin Hoffmam, que estava em cartaz em Londres, sobre a novidade. Ali começou uma campanha feita por muitos atores, entre eles Allan Rickman, Joseph e Ralph Fiennes e Lawrence Olivier, já muito doente, para salvar o local. Sabemos que tudo deu certo e hoje podemos visitar o espaço e ver parte das ruínas onde foi encontrado um caderno com uma lista de peças em cartaz. Chama a atenção um pagamento feito ao responsável pela montagem de «Titus Andronicus», um tal Wilm Shakespur. Agora, imagina tudo aquilo que ainda não foi descoberto e tudo aquilo que a gente pode preservar.

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